A convite da Biblioteca Ruy Gomes da Silva, da Chamusca, estive hoje
presente no evento "Poesia e Liberdade", inserido nas comemorações do
dia 25 de Abril.
A Liberdade da Memória
Nasci
no dia 06/01/1963, na Vila da Chamusca, no leito do Ribatejo. A minha infância,
adolescência e juventude foram como que pintadas numas pinceladas de natureza:
a arquitectura de traços simples e tons brancos, harmonizava-se com as
aguarelas verdes e castanhas da charneca e da lezíria e, no centro de tudo, a
unir todas as coisas, como a profundidade de um abraço a irrigar as raízes da
vida, o coração do Tejo.
A Vila era um lugar de silêncio e
tranquilidade que se tornou quase surdo, quando as pessoas e as suas palavras
emigraram nos comboios, ou nas camionetas e carros dos “passadores”, a salto
para França e outros países da Europa, para livres e condignamente construírem
os seus ninhos familiares, que na sua Terra só as aves, como as cegonhas,
tinham a liberdade de construir, nos eucaliptos situados a norte da Chamusca e
que bordejavam a Estrada Nacional 118.
Surdez que se tornou mais audível,
quando os homens jovens foram arrancados da Terra, despejados sobre os convés
dos navios e depois, de olhos salgados de mar e de lágrimas, foram plantados
nas terras inóspitas e inférteis de África, onde apenas a guerra e a morte
subsistiam.
Entretanto, no dia 25 de Abril de 1974, deu-se
a Revolução e, como uma cheia de liberdade, galgou o Tapadão, embebeu-se pelos
campos e veio beijar os pés da Terra Branca.
Como cegonhas, os emigrantes num
gesto de asa esvoaçaram para a Chamusca onde voltaram a aninhar-se nos seus
lares.
Os militares regressaram felizes, com
a esperança viva nos corpos desarmados.
O sol brilhava tão intensamente, como
um coração a acender de sangue as candeias da alma, e tudo parecia tão perfeito
como a paisagem vista dos olhos do Mirante.
Hoje, neste profundo labirinto
humano, onde o passado, o presente e o futuro se confundem, se repetem e se
perdem, como cegos tacteando sombras sem saída, só os pormenores e sentimentos
da infância, adolescência e juventude vivem livres na minha memória, o único
espaço que ainda resiste à traição do tempo e à ditadura de um mundo sem
liberdade.
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